A relação do livro com os mais novos está a mudar? - Artigo do site EDUCARE






Os hábitos de leitura sofrem com as novas tecnologias? A relação do livro com os mais novos está a mudar? O que se pode fazer? Como devem ser usados os manuais escolares? Sublinhar ou não sublinhar? Jorge Ascenção, Manuel Pereira, Filinto Lima e Paulo Guinote partilham as suas opiniões sobre estes assuntos.

Ler, livros, leitura. Juntar palavras, construir frases, contar ou inventar histórias. Descobrir novos mundos, entrar no reino da fantasia, acompanhar vidas reais ou imaginárias. Aprender, descobrir, pensar. Ler, sonhar, refletir. Construir valores, consolidar princípios. Crescer. Os hábitos de leitura mudam, as novas tecnologias estão para ficar, os alunos leem menos, qual a importância do livro nos primeiros anos da escola? Jorge Ascenção, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, e Paulo Guinote, professor de Português, responderam a várias questões sobre leitura e o que está à sua volta.



“Uma criança que cresce com os livros, que aprende a ‘saboreá-los’ e a senti-los será uma pessoa da arte, da cultura e da cidadania. Será gente e com gente. Será seguramente alguém que vive para além de si e que melhor compreenderá o mundo e a humanidade, vivendo e fazendo parte ativa da sua construção social.
O livro é uma janela para o mundo que tem que se abrir e fechar conforme as circunstâncias. Ajuda-nos a construir uma visão do mundo, a conhecê-lo e a integrá-lo ao mesmo tempo que nos faz saber estar protegidos desse mesmo mundo”. É desta forma que Jorge Ascenção, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), fala do livro e do que ele representa para quem descobre o mundo. 

O livro é a base da construção de valores, do valor do trabalho, do afeto, do respeito, da amizade e do amor. Dos valores que fazem da vida um bem maior de experiência e de felicidade. Mas os hábitos de leitura têm vindo a sofrer alterações. São as mudanças tecnológicas, a alteração de estímulos, e outras coisas. “A pressão programática dos extensos currículos escolares, as metas e a obsessão por resultados escolares quase limitados à obtenção de uma nota classificativa (quem há anos atrás falava ou relevava os rankings) e a cada vez maior competitividade sem que se valorizem outras aspetos da formação e do desenvolvimento pessoal, onde o que importa é estar melhor e não o ser bom, são alterações dos últimos tempos que influem nos hábitos de leitura”, refere o presidente da CONFAP. 

O livro é um amigo, um manual escolar também. A política de reutilização dos livros escolares no 1.º Ciclo do Ensino Básico condicionará a sua utilização, já que os manuais são cedidos gratuitamente com a indicação de serem devolvidos no final do ano escolar. Como deve então ser esta apropriação do manual escolar no primeiro nível de ensino? “Quando falamos de livros escolares, estamos a falar de um livro de trabalho, por isso lhe chamamos manuais. Um manual é para manusear e adequar ao estudo de quem o utiliza. Por isso não faz sentido impor regras de utilização comuns e uniformes”, refere Jorge Ascenção. Sublinhar ou não sublinhar? Sublinhar a lápis, a caneta, a marcadores de várias cores? “Para muitas crianças do 1.º ano do 1.º Ciclo este manual é o seu início de contacto com o livro e deve ser uma experiência inesquecível de afeto e de prazer com o cheiro e o folhear do livro.” Uma experiência que se quer inesquecível e, por isso, o dirigente da CONFAP defende que tudo deve ser feito para que esses primeiros livros sejam guardados na memória e em casa. “Esta deve ser uma das missões da escola e as políticas devem-no permitir e potenciar. Doutra forma poder-se-á estar a condicionar o gosto pelo livro e até o percurso académico de algumas crianças”, observa.

“O livro é para usar e abusar. Com respeito e responsabilidade, o que não significa necessariamente que não se possa sublinhar ou tomar notas. Depende do livro e do que se pretende com a sua utilização. Percebo o discurso do não estragar, no sentido em que devemos estimar o livro e não maltratá-lo, mas com as crianças temos que ter cuidado com as palavras para não se sentirem coagidas”, avisa. A ideia é que percebam que o livro é um suporte para o seu conhecimento e desenvolvimento. “O discurso de não estragar vai acabar por prejudicar os que mais precisam de ser incentivados por razões que todos entendem. Outra coisa é o estragar sem utilizar ou o negligenciar o cuidado com o livro, isso deve ficar claro em qualquer circunstância e nomeadamente se o livro é oferecido pelo erário público. Mas não se pode penalizar a utilização do livro de acordo com as respetivas necessidades de aprendizagem.” 


Pequenas notas são “semáforos da memória” 

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), faz suas as palavras do escritor Mário Cláudio que afirma que tem de haver colo para ler. E ler é essencial na formação da personalidade, na mecânica da leitura, na aquisição de vocabulário para expor ideias, para o sentido crítico, para argumentar, comentar o mundo, desenvolver a criatividade e a imaginação, para adquirir valores. “Uma família que não lê não forma para a leitura.” 

Muitas vezes, o primeiro contacto com os livros acontece no primeiro ano de escola. “Estudar pressupõe sublinhar, fazer apontamentos. Se o aluno não o pode usar como instrumento de trabalho logo desde os primeiros anos da sua escolaridade, não será também assim que o vai encarar nos anos mais avançados.” Para Filinto Lima, um manual é para ser usado. “Impedir que os alunos sintam o livro como instrumento de trabalho pode ser prejudicial. Não sabemos como será o ensino no futuro, mas seja qual for o suporte de informação deverá ser permitido que se façam anotações (mesmo nos livros digitais, já há processos de anotar, fazer notas laterais, esquemas para estudo), porque é assim que se estuda, se faz a seleção da informação que se pretende para cada caso.”

Os livros de estudo devem, portanto, ser usados como sempre foram. “Lidos, explorados, anotados, sublinhados e guardados. Sempre há qualquer coisa que podemos aprender nos nossos velhinhos livros. Mesmo quando acharmos que já nada podem fazer por nós, os bons livros sempre trazem à memória ensinamentos, métodos de aprendizagem e pequenas coisas que nos escaparam quando fomos estudantes”.

O livro é um amigo no processo de socialização das crianças e jovens, um instrumento de desenvolvimento, de conhecimento, de habilidades de escrita, de criatividade, de interpretação. Um amigo que ajuda a conhecer melhor o mundo. “A apropriação do livro como instrumento de crescimento e aprendizagem, desde muito cedo, garante um maior equilíbrio nas aprendizagens e promove o sucesso formal e informal nas mesmas. Nesse sentido, o livro, de acordo com o nível etário, deve ser sempre visualmente estimulante, colorido em idades mais precoces e estruturado de forma apelativa, oferecendo manchas gráficas motivadoras e conteúdos que vão ao encontro da necessidade reprodutiva da imaginação das crianças e jovens. O livro, para os jovens, deve ser sempre o primeiro contacto estruturado com o mundo que fica para além das fronteiras visíveis”, refere Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE).

Manuel Pereira pertence a uma das gerações que se habituaram a usar os livros de estudo como bloco de notas. Para sublinhar, fazer apontamentos, notas de rodapé. Mais do que um hábito, uma estratégia promovida como boa prática. Os livros académicos estavam noutro patamar, protegidos de tais práticas, quase como uma questão cultural. Na sua opinião, os livros, nomeadamente no Ensino Básico, devem continuar a ser instrumentos a apropriar pelos utilizadores. 

“Sublinhar ou colorir informações são estratégias difíceis de substituir. Registar pequenas notas é como colocar semáforos de memória na informação marcante ou mais relevante dos aprendentes. Daí que, percebendo o princípio que enforma a política de empréstimo de manuais escolares, não deixamos de registar, contudo, a enorme dificuldade que é essa mudança de paradigma. Admitimos a necessidade de reformular o conceito de livro académico, nomeadamente ao nível do Ensino Básico porque, de facto, a estrutura dos mesmos propicia as práticas tradicionais que agora se pretendem alterar”, adianta o presidente da ANDE e diretor do Agrupamento de Escolas de Cinfães.

Nada se muda de um dia para outro, mas Manuel Pereira considera que é necessário repensar o conceito de manual escolar. “Talvez esse, um passo a ser experimentado antes, para depois se poder estimular a devolução de manuais para posterior reutilização. O livro não pode ser um objeto intocável, antes deve ter uma relação quase quinestésica com os seus utilizadores e nesse sentido deve ser usado, manuseado e utilizado”, defende.

Para onde caminhamos nesta relação com os livros, nestes novos hábitos de leitura? “Os mais novos nascem agarrados ao suporte digital. Normalmente para jogos ou coisas mais supérfluas, como as redes sociais, ou mesmo para comunicarem entre si. Hoje os seus espaços de encontro são no computador, telefone ou tablet. Poderemos nós impor outros gostos ou relações? Mesmo que o pudéssemos fazer não teríamos o resultado pretendido, porque ninguém se desenvolve sem liberdade de escolha. O que precisamos é de ser capazes de descobrir e perceber como incentivar a leitura através de propostas que desafiem a criatividade e o espírito crítico das crianças e dos jovens”, refere Jorge Ascenção, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP). 

O que pode ser feito? Estimular a relação com a leitura, respeitando vontades e capacidades dos mais novos. Trabalhar de forma transversal as diferentes áreas do conhecimento. Trabalhar mais nas bibliotecas. Explicar a importância do livro na compreensão do dia a dia. “O aroma do livro insere-se no nosso cérebro e enraíza-se na nossa memória fixando a vontade de voltar ao seu contacto”, sublinha o dirigente da CONFAP. 

As novas tecnologias vieram para ficar, facilitam o acesso à informação e às histórias, exigem pouco esforço, e os jovens não sentem a necessidade de ler. “A escola, por vezes, também mata a vontade de ler ou não seduz para a leitura. Ou a impõe, e a obrigatoriedade é meio caminho para a rejeição, ou retira o tempo necessário para o fazer priorizando outras competências, ou não seduz para ela: o docente que não lê não motiva para a leitura”, observa Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP). “Atrevo-me a dizer que os fracos hábitos de leitura serão nefastos para os homens e mulheres do amanhã já que lhes vai ser exigida a criatividade, o empreendedorismo e atualização de conhecimentos ao longo da vida. Só quem dominar a leitura e souber transformá-la em conhecimento conseguirá intervir de forma responsável na sociedade”, acrescenta.

Mas há coisas a fazer. Apostar na leitura, educar as famílias nesse sentido, incutir na sociedade que é fundamental valorizar esse hábito. “Se a escola encarar a leitura como uma mais-valia para a formação global da criança ou jovem dando-lhes tempo para ler e encarar a leitura não como um enfado, mas como uma fonte de prazer e fruição, então não teremos razões para alarme porque eles voltam.” Eles voltam a ler. 

Os hábitos de leitura têm vindo a sofrer alterações substanciais ao longo dos últimos anos, nota-se um certo declínio da leitura como instrumento tradicional. Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), olha para tudo isso não como problemas, mas como oportunidades. “A leitura não perdeu importância nem o livro perdeu espaço. Motivar para a leitura requer, hoje, dinâmicas motivacionais diferentes e o recurso a novos estímulos menos formais e mais próximos das vivências experienciadas de cada um”, realça. 

“O aparecimento de novos centros de interesse também se constitui como oportunidade na medida em que o próprio livro se consegue reinventar e oferecer, ele próprio, novos caminhos. Quando até há uns anos, o livro não tinha qualquer concorrência no processo motivacional proposto por pais e educadores, surgindo como o arquétipo do conhecimento, hoje, as novas tecnologias propostas pela Internet e por todas as valências a ela associadas  oferecem um manancial de espaços motivacionais estimulantes, e mesmo viciantes, que não deixam espaço para o regresso ao livro, entendido, claro, como instrumento tradicional de leitura”. “É claro que o livro e a leitura não perderam o seu papel fundamental. Continuam a ser opções fundamentais na construção académica estruturada do conhecimento e da formação pessoal”, acrescenta o dirigente da ANDE. 


Uma chave para novos mundos 

Para Paulo Guinote, professor de Português, licenciado em História e doutorado em História da Educação, que durante anos geriu o blogue A Educação do Meu Umbigo, um dos mais lidos sobre temas educativos, os livros de estudos são como amigos que não magoamos, mesmo quando brincamos com eles. “Como qualquer outro ‘utensílio’ que usamos para uma função, mas não deitamos fora depois desse uso. Os livros de estudo são companheiros e, em simultâneo, cápsulas do tempo dos seus utilizadores, para quem podem constituir um inestimável e indispensável elemento de construção da memória e identidade pessoal. Os livros de estudo ajudaram-nos e ajudam-nos a sermos o que somos”. 

Promover a leitura no suporte tradicional e tornar os livros mais acessíveis, com preços adequados, são caminhos possíveis. “O aumento dos níveis de leitura não passa por campanhas em que se anunciam futuros apenas digitais, desmaterializados e em que o objeto-livro de torna financeiramente pouco acessível. Há que adaptar o preço da oferta de forma a alargar a base da procura e não investir apenas num nicho estável de compradores recorrentes. O preço de certos livros para crianças e jovens é demasiado elevado, bastando comparar com o que é praticado em outros países (e estou a ter em conta a necessidade de pagar a tradução e os pagamentos de direitos de autor). Há livros a 12-15 euros de autores já no domínio público, quando em Inglaterra essas coleções têm preços de 3-5 euros. A inserção de algumas ilustrações não justifica a discrepância”, conclui. 

Paulo Guinote olha para um livro como “uma chave que abre o acesso a um mundo novo, seja de conhecimentos sobre um dado tema, seja da imaginação dos autores”. “Um livro deve ser um ‘objeto’ que, quando aberto e interpretado, permite a transformação do seu leitor, trazendo-lhe uma mais-valia que deve ser mais do que meramente utilitária, contribuindo para o seu bem-estar e felicidade”.

Nunca gostou de escrever nos livros, a menos que fosse obrigado. Em seu entender, a apropriação do livro não passa necessariamente por sublinhar ou fazer anotações, práticas que, em seu entender, podem não interferir na relação com os livros. “Acho mais perigosa a ideia de ‘desmaterializar’ os manuais escolares, tornando-se algo imaterial e não manuseável pelos alunos. O livro foi ao longo do tempo um ‘espaço’ para o diálogo entre o seu conteúdo e o leitor, não sendo as anotações o mais importante. Acho que o ‘fim’ dos livros físicos é um atentado muito maior a essa relação de familiaridade”, comenta.

“O não estragar os livros nunca pode ser uma mensagem errada. O que deve sublinhar-se é uma utilização correta e responsável dos materiais escolares. Foi graças a isso que pude manter os meus livros da ‘Primária’ e ainda os ter, décadas depois. Mesmo se resolvi neles alguns exercícios. O livro não deve ser ‘sacralizado’ da forma errada. É um objeto que manuseamos, que exploramos, mas que não devemos estragar de forma desnecessária.”

O fim anunciado dos livros em suporte físico preocupa Paulo Guinote, mas, apesar da ameaça dos meios digitais, o professor verifica que a área infanto-juvenil é dos setores editoriais que mantêm maior dinamismo. “Uma coisa boa foi a promoção ativa da leitura a partir das escolas, o PNL é das medidas menos controversas na área da Educação, outra a permanência do gosto dos ‘miúdos’ por lerem num suporte tido como tradicional; por fim, uma terceira coisa boa é a qualidade média do que é editado, seja nacional ou importado. E não é apenas o fenómeno ‘Harry Potter’. O fenómeno menos bom é a insistência num discurso que parece estar sempre a anunciar o fim do livro tradicional e o suporte digital como o único ou dominante ‘no século XXI’. Quem isso faz, para além de objetivamente prejudicar o livro, é mais prisioneiro de algumas modas do que propriamente um profeta certeiro”, refere. 

Artigo de Sara Oliveira para o site EDUCARE, em 21-09-2017

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