Para se contar uma história ...




Pra se contar uma história...(Batista Filho)



Pra se contar uma história
há-de se vestir de história.
Pra se vestir de história
há-de se despir da própria pele
se tatuar de gestos largos e comedidos
se impregnar de sons e cheiros
ter no olhar o brilho das estrelas
e o escuro do poço mais fundo
- sem perder as nuances, todas elas
que habitam entre o clarão e o escuro!


Pra se contar uma história
há-de se mergulhar nela
sem medo de morrer afogado
há-de se levá-la às alturas
sem medo de despencar do alto.


Pra se contar uma história
há-de se inventar palavras
há-de se despertar choro
há-de se acender risos
sem se dar por isso.


Pra se contar uma história
há-de se cantar cada palavra
com gosto de palavra nova
e cada palavra nova
o som dos sinos trazer consigo
a ecoar desde o sempre até ao infinito
fundindo silêncio e grito
de toda memória...


Pra se contar uma história
há-de se despir da própria pele
se tatuar de gestos largos e comedidos
se impregnar de sons e cheiros
ter no olhar o brilho das estrelas
e o escuro do poço mais fundo
- sem perder as nuances, todas elas
que habitam entre o clarão e o escuro!




“Contar histórias foi, é e será sempre uma necessidade profunda do ser humano. As pessoas não podem viver sem fazer o relato mais ou menos pormenorizado do que lhes aconteceu ou ao que pensam ter-lhes acontecido. Para o comum dos mortais a vida tornar-se-ia um pesadelo insuportável se não dispusessem de um ouvido atento e amigo a quem recorrer nas horas boas e nas horas más.

Os que se tornaram escritores de certo modo não têm esse problema. Podem falar de si, das suas experiências, do que desejaram ou imaginaram em noites de delírio, amassar a realidade mais próxima com a fantasia mais distante, inventar histórias, criar personagens ao sabor do capricho ou da vontade.

Seja o que for que escrevam acabará por ser lido por alguém. Os livros surgem portanto em resposta a uma necessidade de quem produz, embora a existência de público ávido, interessado, ansioso, seja estimulante.

Mas se falarmos de literatura infantil, levanta-se de imediato grande polémica. Os livros de histórias são uma necessidade de quem escreve ou de quem lê? O autor pode permitir-se tudo? Há ou não há temas interditos? Deve procurar uma linguagem simples? O adulto conseguirá dirigir-se às crianças se escrever ao sabor da sua imaginação? Se o texto tiver qualidade literária só por isso é acessível a grandes e pequenos? As características próprias do público infantil devem ou não servir de referência ao escritor? Os autores que utilizam essas referências fazem obras menores? Será sequer legítimo falar de literatura infantil?

Existe uma literatura infantil pelo menos desde o século XVIII. Entre «Os Maias» e «A Fada Azul» há um abismo, e dizer o contrário é absurdo. O talento literário não se confunde com o dom de comunicar com as crianças. Só consegue empatia profunda com os mais novos quem tiver um talento específico para o fazer, o que não se aplica, como é óbvio, apenas a quem escreve histórias.

Mas quem as escreve fá-lo para corresponder a um desejo próprio, ou alheio?

Não é necessário pensar muito para chegar a uma conclusão. Se separarem a avó do neto a quem contava histórias, as saudades de um serão iguaizinhas às do outro! Foi, aliás, assim que a fabulosa Condessa de Ségur se tornou escritora. Levaram-lhe para longe as netas preferidas, Camila e Madalena. Para mitigar o desgosto passou a enviar-lhes pelo correio os contos que inventava para elas. Essas missivas acabaram nas mãos de um editor. A partir de então, dirigiu-se a um público bem mais vasto, do qual nós quase cem anos depois ainda fizemos parte. ”

In Magalhães, Ana Maria, Isabel Alçada, Literatura infantil, Espelho da Alma, Espelho do Mundo, s.d.

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